Celso Furtado, subdesenvolvimento e a educação

O posicionamento progressista tem vários matizes e sua agenda política é guiada pelas premências de cada período histórico

Em 20 de novembro de 2004, Celso Furtado nos deixava, após uma admirável obra como acadêmico e homem público. São muitas as dimensões e os temas em que Furtado nos ofereceu contribuições ou inspirações importantes e não encontra rival à sua altura em matéria de desenvolvimento econômico. Há muito ainda o que perscrutar sobre a sua obra e é sempre salutar reexaminar seu legado, em particular quando este é objeto de críticas.

Em entrevista-reportagem de Guilherme Azevedo, publicada em 29/09/2018 no portal UOL, Samuel Pessôa oferece sua visão de (sub)desenvolvimento brasileiro. Em referência a Furtado, o entrevistado afirma que o “pensamento de esquerda tem tendência a achar que o subdesenvolvimento é sempre exterior às pessoas” e que a esquerda sempre teve dificuldade de localizar na educação “o motor do desenvolvimento econômico”.

Complementa, sem especificar, que “os autores que perceberam uma ligação entre educação e desenvolvimento eram conservadores. Isso é muito claro quando a gente olha para a obra de um autor como Celso Furtado”.

O posicionamento progressista tem vários matizes e sua agenda política é guiada pelas premências de cada período histórico. Ao apontar que esta posição política entende que o subdesenvolvimento é “exterior às pessoas”, Pessôa deixa entrever sua leitura também situada politicamente.

É uma máxima da abordagem conservadora – que ele parece seguir – que o ser humano deve ser livre para escolher quanto gastar, quanto poupar, quanto investir em educação etc. Assim, poupando mais e investindo mais em sua formação, o pobre conseguiria superar sua condição, ainda que com o eventual auxílio do Estado.

O pensamento progressista defende, alternativamente, a democratização da liberdade de escolha de todos os cidadãos, e não apenas para a fração abastada da sociedade. A pobreza e a desigualdade extremas impõem severas limitações ao espaço decisório dos 90% na base da distribuição da renda e da riqueza no nosso país.

A estratificação social e as instituições que lhe reforçam os nexos submetem as mentalidades individuais, como salientaram os clássicos da Economia Política. Contra isso, John Stuart Mill e Alfred Marshall já assinalavam a educação poderia garantir melhores condições de concorrência no mercado de trabalho.

Todavia, de Marshall a Friedman e Mincer, aspectos como aptidões pessoais inatas, histórico familiar, estrutura social e sorte são fatores determinantes da distribuição de renda pessoal, manifestos em instituições externas ao indivíduo.

Ora, é prioritário atenuar as desigualdades destas condições que restringem o escopo de suas decisões e perpetuam as desvantagens na economia de mercado. Todavia, a educação de qualidade não é uma força abstrata. É necessário entendê-la como parte orgânica do contexto social.

Os retornos ao investimento em educação (pública e privada) são condicionados pela estrutura familiar e pelo perfil ocupacional da sociedade, o qual depende da estrutura produtiva e pela forma de inserção da economia no comércio internacional. Parafraseando um dito comum ao setor conservador: não há bala de prata na questão do desenvolvimento.

Se nos debruçarmos sobre a obra de Furtado um pouco mais do que apenas “olhar” para a mesma, perceberemos que a educação jamais deixou de figurar dentre as prioridades do mesmo. Por exemplo, como Ministro do Planejamento de João Goulart, Furtado o responsável pelo Plano Trienal (1963), que incluiu o primeiro Plano Nacional da Educação da nossa história.

Furtado escreveu que “a muito custo chegamos (…) à compreensão de que a escola não é apenas o feliz coroamento ornamental de uma sociedade, mas a sua instituição básica, a mantenedora da sua cultura e a promotora de sua dinâmica de desenvolvimento”.

Em janeiro de 1964, ainda no governo Goulart, é lançada a “Comissão de Cultura Popular”, a qual institui o Programa Nacional de Alfabetização do Ministério da Educação e Cultura, mediante o uso do Sistema Paulo Freire, através do Ministério da Educação e Cultura, liderado por Darcy Ribeiro. Mais tarde, Furtado deixaria clara a sua visão conectando educação, ciência e desenvolvimento.

Ao comentar a emergência avassaladora da burguesia mercantil europeia, Furtado reconhece que foi “a conjunção dos dois processos – a sedução que nos espíritos da época exerce a descoberta de novos conhecimentos e a visão das atividades econômicas como um campo aberto à inovação – que definira o espírito da nova época”.

E vai além: “Desde sua origem, a ciência moderna está ligada à ideia de acumulação de conhecimentos que permitem ao homem aumentar sua capacidade de ação”. Como Ministro da Cultura entre 1986 e 1988, Furtado criou a Lei Sarney, sancionada no dia 2 de julho de 1986 que desamarrava autores e produtores culturais para dar o impulso que as atividades culturais nunca tiveram no país.

Promoveu, ainda, a fusão da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) com a Fundação Nacional Pró-Memória, com vistas a dar maior dinamismo às políticas culturais voltadas para a preservação do patrimônio cultural. O recente incêndio do Museu Nacional mostra a centralidade desta instituição (hoje IPHAN) na defesa do patrimônio cultural.

Esta pequena amostra contraria a afirmação injusta de Samuel Pessôa à obra de Furtado. Dadas a premência e a dominância dos processos de acumulação no direcionamento das condições materiais de vida nos países periféricos a educação tem um papel menos explícito em sua abordagem teórica. Todavia, a obra de Furtado transcende seus escritos.

Como homem público, deixou claro o papel valioso atribuído à democratização da educação, como instrumento da construção da cidadania popular, da transmissão da herança cultural nacional e como motor do desenvolvimento socioeconômico, forças estas que podem moderar os efeitos sociais danosos da acumulação desenfreada concentradora de renda e de riqueza.

Alegar que a “esquerda” nunca relacionou educação ao desenvolvimento soa como um revisionismo seletivo da história de um país em que os principais educadores são progressistas, como é o caso de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire.

Sistematicamente derrotados pelas forças conservadoras, estes pensadores e homens de ação progressistas tentavam corrigir as desigualdades herdadas da escravidão, estampadas ainda hoje em cada esquina e dentro de nossos lares.

Neste aniversário de 14 anos de sua passagem, fazemos esta singela homenagem a quem educou gerações inteiras de economistas sobre os dilemas que acometem os países presos na armadilha do desenvolvimento.

André Roncaglia de Carvalho é professor adjunto do Departamento de Economia da EPPEN-UNIFESP, Campus Osasco.

 

Fonte: Carta Capital

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